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sexta-feira, 20 de março de 2020
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quarta-feira, 4 de março de 2020
CONTO Helga - Lygia Fagundes Telles
Ela era uma só. Não havia outra e se quisesse compará-la com alguma coisa, seria
com os tenros cogumelos dos bosques ou com as manhãs de bicicleta nas estradas
impecáveis ou com as primeiras cerejas da primavera. Era uma, una, única, apesar
de ter uma só perna, aliás bela como ela toda. Mas é cedo para falar não sobre sua
beleza — que deve ser lembrada sem enfado quantas vezes forem necessárias —
mas cedo para falar sobre a perna que vai exigir explicação. A perna envolve
viagem, guerra, a perna vai tão além... Sem esclarecimento tudo será apenas
crueldade.
É bom dizer logo quem eu sou: Paulo Silva, brasileiro. Mas fui alemão. Filho de
alemã de Santa Catarina e desse Silva brasileiro que não cheguei a conhecer. Mãe
alemã nascida no Vale do Itajaí, neta de proprietários em Vila Corinto desde 1890,
pude ver isso nos papéis. Mas alemã malvista porque se casou com o Silva, Paulo
também, o que me faria Paulo Silva Filho. Mas nada disso vigorou, na escola eu já
era Paul sem o o, Paul Karsten. E o destino amável de um Paul Karsten, ginasiano
de Blumenau em 1935, eram férias, cursos de aperfeiçoamento, amizades e
amores na Alemanha. De Hitler, é bom lembrar. E não havia nada melhor, a
começar pela viagem no Monte Pascoal, classe única com escalas na Bahia, em
Madeira, Lisboa, e depois Hamburgo até os verões intermináveis nas Casas da
Juventude, com excursões, piqueniques, bicicletas, cerejas e sexo em meio do
cansaço feliz e da dose exata de melancolia. Jugendhaus, era esse o nome dessas
casas e pensar nelas me faz pensar em fonte e musgo. As viagens seguintes, três
ao todo, foram marcadas pelas aulas cheias de simplicidade e exaltação. E a nossa,
a minha particular importância por ser alemão e alemão estrangeiro. Esportes.
Treinos. O aço das metralhadoras sem carga encostado no peito banhado de suor.
As bandeiras apoiadas no ombro no desfile diante de Hitler e Mussolini no estádio
de Berlim, os alemães da América do Sul marchando logo atrás dos países sudetos
e antes mesmo dos alemães da América do Norte. Amizade e amor foi lá que
conheci, próximos e concretos. E o ódio também abstrato e longínquo, aos judeus,
aos comunistas e a outras coisas mais que já esqueci. Tudo aconteceu porque a
terceira viagem foi no verão de 1939. Não vou contar minha guerra, Polônia,
França, Grécia, Rússia...
A beleza de Helga e a sua perna. Confesso que durante muito tempo não sei
em qual pensei mais, se na que tinha ou se na que perdera. Mas é cedo. Por
enquanto é preciso dizer como foi possível acontecer o que aconteceu. O meu
hitlerismo era jovem, leal, risonho e franco e a guerra não entrava na jogada. Nela
fiz mais ou menos tudo o que os outros fizeram e até menos do que vi ser feito em
matéria de luta ou crime. De resto, eu e meus camaradas de armas éramos
parecidos, menos numa coisa: nunca consegui estabelecer um vínculo entre essa
guerra e as férias na Jugendhaus em meio dos piqueniques nas florestas e
excursões pelas estradas marginadas de verdor. As aulas tão nítidas eram para
isso? A palavra unerbittlich significava mesmo implacável e era para valer? Só mais
tarde, depois da guerra, descobri dentro de mim que aprendera a lição.
Curioso é que hoje já não consigo lembrar qual a perna que Helga perdera, se
a direita ou a esquerda. E dizer que durante anos não houve dia nem hora que
Helga não aparecesse no meu pensamento. Acha meu analista que os
esquecimentos parciais são frequentemente formas sutis de autopunição. Não sei
se isso é verdade mas sei que agora que resolvi evocá-la não posso impedir que a
todo instante ela cruze estas linhas antes do momento exato em que devia
comparecer. Quero confessar que não liguei muito quando soube que o Brasil
entrara na guerra contra a Alemanha mas devo dizer também que achei bom não
ter combatido contra soldados brasileiros. O que me faz pensar que nunca deixou
de existir em mim alguma coisa do filho daquele Silva que sempre imaginei moreno
pálido, a cara comprida e os olhos tristes.
Assim que acabou a guerra, vendi meu capacete e meu punhal com a cruz
suástica a um funcionário brasileiro que até hoje não sei o que estava fazendo em
Düsseldorf. Fomos para uma cantina onde me pagou uma cerveja e dele ouvi então
coisas alarmantes: que a minha situação jurídica era nada mais, nada menos, do
que a de um traidor, quer dizer, uns quinze anos de cadeia, por aí. Era só voltar e a
condenação viria na certa. Recebi a notícia na hora errada porque naquela altura
meu desejo maior era esquecer a guerra, encerrar as férias na Alemanha e
tranquilamente voltar para Vila Corinto, casar por lá, cuidar do plantio, da criação e
ajudar minha mãe que devia estar velha. Helga ainda não aparecera na minha vida
e o hitlerismo e a guerra ainda não tinham me marcado para sempre. Ainda não.
Há um pormenor que me ocorre com tamanha insistência que fico às vezes
pensando, pensando e não descubro por que me lembro tanto das unhas do seu pé
pintadas com esmalte rosa. Não sei qual perna lhe restara mas revejo seu pé, só o
pé com as unhas pintadas, não pintava as unhas das mãos, limpas, polidas mas
sem esmalte. Pintava as do pé, economizando assim o esmalte que naquele tempo
era raro como todo o resto, comida, roupa. Unhas de um tom de rosa delicado, ela
gostava das cores tímidas.
Não poder voltar para o Brasil decidiu minha sorte de continuar Paul Karsten o
tempo necessário para enriquecer e nunca mais ter paz. Não por ter enriquecido,
como veremos, estou chegando lá. O caso é que não fui prisioneiro de guerra nem
propriamente desertor. Num momento de confusão a guerra se afastou de onde me
encontrava, não voltou mais e depois acabou. Já contei que vendi meu capacete e
meu punhal. Arranjei em seguida outros punhais e capacetes que vendia para
jovens recrutas americanos que chegaram demasiado tarde e doidos por levarem
qualquer suvenir desse tipo. O pequeno comércio de troféus ampliou-se para
cigarros, chocolate, leite em pó e outras latarias, mas tudo muito reduzido. Basta
dizer que na intendência americana meu sócio mais qualificado era apenas
sargento, o que mostra bem a modéstia do negócio.
Naquela improvisação de vida ao deus-dará, o tempo perdeu a medida e hoje
não sou mesmo capaz de lembrar quando exatamente conheci Helga. Só sei que
sua beleza me surgiu inicialmente da cintura para cima atrás do balcão da
farmácia, se assim podemos chamar àquele casebre de madeira enegrecida,
toscamente erguido no meio das ruínas do sudeste industrial de Düsseldorf. Sua
beleza, foi sua beleza o que de início me impressionou. E depois, seu recato, sua
doçura naquele mundo de fim do mundo. Passando pela farmácia, não houve vez
que não a visse ereta e séria, vendendo aspirina e as tais latinhas de pomada
fabricada pelo pai, o velho Wolf, um verdadeiro caco aos quarenta anos, andando
quilômetros em busca de mercadoria: vidrinhos de iodo e alguns metros de gaze.
Foi o velho quem primeiro me falou da penicilina e do quanto um negócio
desses poderia render. Até então eu vendia para Helga algumas latas de leite em
pó e de veneno para rato. Também me lembro muito de um outro pormenor: a lata
de leite tinha uma risonha vaquinha no rótulo e a outra tinha um rato negro, morto,
dependurado pelo rabo por um longo fio. Quero ser verdadeiro quando digo que
não me importei ao ver meu lucro diminuído devido à perda de tempo em vender-
lhe as ninharias que podia comprar. O prazer de vê-la era tão grande que me
sentia compensado quando ouvia sua voz calma, harmoniosa como os seus gestos
que por sinal eram raros. Não procurava, então, a mulher. Durante meses a caça à
comida utilizava quase toda a imaginação e energia de que sou capaz, qualquer
preocupação com mulher se dissipava nessa caça. Foi só numa segunda fase que
relacionei a beleza de Helga com o desejo. Já sabia então da sua perna, ela
mesma me contou quando recusou-se a me acompanhar a um local de danças,
improvisado nos escombros do museu. Fiz o convite quando fui cedo à farmácia,
soubera das danças e não vi melhor oportunidade para sair com ela. Estava como
sempre detrás do balcão mas assim que lhe falei em dançarmos teve um
movimento de fuga enquanto uma nuvem preta pareceu baixar sobre seu rosto tão
limpo. Mas logo espantou a nuvem e sorriu quase natural quando confessou que
não podia dançar as valsas que lá tocavam, tinha uma perna só. Aquela noite
pensei muito na mutilação de Helga, mutilação antiga, pois ela perdera a perna e o
resto da família, menos o pai, no primeiro bombardeio de Hamburgo. Na mesma
ocasião o velho Wolf perdera também a farmácia, a primeira, pois a segunda e a
terceira foram destruídas em Düsseldorf. Ainda era rico depois da tragédia de
Hamburgo e a prova disso é que montou em seguida mais essas duas farmácias.
Outra prova de que tivera dinheiro foi a magnífica perna ortopédica que comprou
para a filha, daquelas que durante a guerra eram reservadas para heróis
excepcionais, membros graúdos do Partido Nacional-Socialista ou oficiais
superiores. Fora desse tipo de gente só os muito ricos podiam comprar uma perna
igual. Não pude então deixar de sentir um certo espanto quando vi Helga sair
andando detrás do balcão, mancando um pouco, é certo, mas discretamente, com
uma lentidão que combinava com seu feitio. Imaginara-a plantada numa perna só,
apoiada em muletas ou numa bengala, dando saltos penosos... E cheguei a dizer-
lhe que num vestido de noite ninguém notaria a perna artificial. Ela então baixou
os grandes olhos claros.
No dia seguinte era domingo e Helga concordou em sair comigo. Eu podia
emprestar o jipe do sargento americano mas a tarde estava tão agradável que ela
preferiu que fôssemos mesmo a pé. À noite — era uma noite estrelada —
jantamos, ela, o pai e eu, uma lata de rosbife e outra de milho que desviara do
meu comércio. Senti-me generoso, bom. Foi aí que o velho Wolf me falou da
penicilina. Na cara devastada do farmacêutico vi como seus olhos azuis, iguais aos
da filha, coruscavam de entusiasmo ao imaginar o negócio. Ele tinha o cálculo fácil
e claramente demonstrou que três meses de tráfico de penicilina eram o suficiente
para juntar uma pequena fortuna. Havia apenas dois problemas a enfrentar: o
primeiro era o risco, mas não tão grande assim, na pior das hipóteses um par de
anos na cadeia, se tanto. A segunda dificuldade, a maior, era a mesma de qualquer
negócio: o capital inicial. E para tudo, uma condição indispensável, a rapidez. Esses
grandes negócios só funcionariam durante uns seis meses, no máximo. Depois, a
eficiência combinada de americanos, russos e dos próprios alemães iria pôr tudo
nos eixos e qualquer empreendimento se tornaria rotineiro, lento. Com os ingleses,
nem pensar. A coisa do lado de cá tinha que ser feita mesmo com os americanos e
sem demora. O velho se ramificava em considerações mas minha atenção se
concentrava em Helga, a doce Helga que eu já beijara naquela tarde. Foi então
meio distraidamente que ouvi o que ele disse? Pois sim. Naquela noite e no dia
seguinte não pensei noutra coisa. Pedi pormenores e ele me falou num certo
major-médico, chegamos até a procurar o homem mas ele fora transferido para
Hamburgo. E o capital? Via o velho diariamente e ficávamos falando, falando... E o
capital? Foram dias de tanta inquietação, a tal ponto fiquei seduzido pela ideia que
meu pequeno comércio começou a declinar. Via o velho e via Helga, com ela
também falava demais e de repente falei em casamento.
Como é difícil reconstituir os acontecimentos! Lembrar o ano em que tudo
aconteceu já exige esforço. Distribuir os fatos pelos meses não consigo. Mas
ordenar os sentimentos é para mim totalmente impossível. Revivo o tempo da
contemplação de sua beleza e depois os instantes de fundo desejo. E lembro muito
do casamento. Quanto ao amor por Helga, afirma o analista que não passa de um
recurso autopunitivo que resolvi imaginar. O fato é que me casei e na própria
madrugada de núpcias fugi para Hamburgo levando a perna ortopédica que em
seguida vendi. De posse do capital inicial, não foi difícil encontrar o tal major e no
tempo previsto pelo velho Wolf, seis meses mais ou menos, fiz fortuna.
Daí por diante não foi mais possível dizer que as férias nazistas na Alemanha
foram episódios fortuitos na vida de um jovem de Vila Corinto. Paul Karsten
cometeu seu crime de guerra, pessoal e por conta própria, mas fora do lugar e com
a pessoa errada. O ato de raça de senhor alemão aprendido nas aulas floridas dos
cursos de 1936 foi praticado em plena paz por um pobre rapaz brasileiro contra
uma pobre moça alemã. Engano ainda pensar que o fim de Paul Karsten foi uma
solução. Alguns anos mais tarde, Paulo Silva Filho voltou para o Brasil anistiado e
rico, mas voltou um homem de pouca fé e imaginação amortecida. A única maneira
que encontrou de expiar o crime do jovem Paul foi tornar-se um cidadão exemplar.
Hoje, o analista explica que simplesmente procuro e encontro, na insipidez da
virtude, a punição de Paul Karsten e de seus camaradas.
Exercícios:
1) Quem é o narrador do conto e qual o tipo de narrador utilizado?
2) Qual o sentimento que Paulo demonstra no começo do conto?
3) Qual foi a maneira que Paul encontrou para expiar seu crime?
4) O que aconteceu com Helga?
5) Pode-se dizer que a narrativa se relaciona a um contexto histórico? Por que e qual? Explique.
ATIVIDADE DE PRODUCÃO PARA NOTA: O que você achou do conto? Faça uma resenha crítica sobre ele.
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